dezembro 05, 2003

Joseph Brodsky


Lido na Janela Indiscreta. Obrigado Cristina.

Ao pôr do sol todas as cidades são maravilhosas, mas algumas são-no mais do que outras. Os relevos fazem-se mais brandos, as colunas mais redondas, os capitéis mais encaracolados, as cornijas mais resolutas, as flechas das torres mais nítidas, os nichos mais fundos, os discípulos mais bem togados, mais aéreos os anjos. Escurece nas ruas, mas continua a ser dia na Fondamenta e nesse gigantesco espelho líquido onde os barcos a motor, os vaporetti, as gôndolas, os batéis e as barcaças «como sapatos velhos em desordem» pisam diligentemente fachadas góticas e barrocas, não poupando também o nosso reflexo nem o da nuvem que passa. «Pinta», segreda-nos a luz de Inverno, detida no seu curso pela parede de tijolo de um hospital ou chegando ao destino, o paraíso do frontone de San Zaccaria, depois da sua longa travessia através do cosmos. E sentimos a fadiga dessa luz, que fica ainda a repousar, durante pouco mais de uma hora, nas conchas de mármore de San Zaccaria, enquanto a Terra oferece a sua outra face à luminária. Esta é a luz de Inverno no auge da sua pureza. Não traz consigo calor nem energia, tendo-os deixado pelo caminho algures no universo, ou nos cúmulos mais próximos. A única ambição das suas partículas é alcançar um objecto e, grande ou pequeno, torná-lo visível. É uma luz íntima, a luz de Giorgione ou Bellini, e não a de Tiepolo ou Tintoretto. E a cidade demora-se nela, saboreando o seu afago, a carícia do infinito de onde veio a luz. Um objecto é, afinal, aquilo que torna íntimo o infinito.

Joseph Brodsky, “A Marca de água” D. Quixote