janeiro 07, 2004

Nova Poesia Portuguesa I

Carlos Bessa
Nasceu em 1967

Livros editados:
Legenda, Atlas, 1995
Termómetro. Diário, Black Sun, 1998
Olhos de morder Lembrar e Partir, Black Sun, 2000
Lançam-se os Músculos em Brutal Oficina, & etc, 2000
Em Trânsito, & etc, 2003


vago pressentimento
para Ana Paula Inácio

A minha vida é este inferno
enumerar, estar sentado, escrever.
O encontro de duas faltas, a ficção
desse por exemplo mais: ignorar,
aprender: a beleza, o medo,
o amor.


junta-te a eles
para Jorge Gomes Miranda

A fome de dar nas vistas é uma fome interior,
querer calar à viva força a eléctrica música
da infância, o sol de outono, essas sombras.
Às vezes um raio um sonho um romance,
um chamamento a que não se responde
porque sempre o ódio, o medo, todo o barroco
que faz tremer as mãos e deixa flores no sangue.

Sim, perante o continuum de indiferença,
os mais dados aos outros vacilam. Vacilar,
contudo, não cala o sofrimento, o modo
como as palavras se encaixam umas nas outras.
Trata-se, talvez, de virar o exagero contra
os feiticeiros, ou de oferecer o corpo aos
altares do marketing. Porque a penitência

um sorriso, um aperto de mão.
Porque são sempre poucos os muito
Calejados nos da descrença degraus.


dentro de momentos, moral
para José Miguel Silva

Música ou qualquer coisa que faça barulho
e encha o vazio da espera –
instruções mecânicas, avisos electrónicos
- até que chegue voz verdadeira
com nome, vontade, profissão,
capaz de responder com indiferença
e cinismo à aflição. Mas, não raro,
depois de guerra qualquer, depois do
pingue-pongue das palavras vazias,
sobrevém um conforto, uma quase alegria,
também pela ilusão de que o comércio
é esse intercâmbio do bem pelo mal
e deste pelo amor.


vida
para Manuel de Freitas

Hei-de , talvez, chegar a velho com o croché
da melancolia, como esses tantos que,
com mais e menos idade,
arrumam as horas nos jardins,
aprumados na sueca
ou noutras fúrias colectivas.
Entreter-me-ei, de desculpa em desculpa,
como se preparasse terreno
para um féretro de pompa,
assistindo. Apenas isso.
Porque um dia fui crente?
Não, apenas novo, sensível
- por distracção ou excesso pop -
ao que se mistura com as palavras
com que aprendi a ler e a escrever.
Poderá ter sido por higiene,
pelo prazer dos banhos secos
que certos livros oferecem.
Não sei, tudo o que conheço é
dos homens, mesmo o que se calhar
nunca foi e que chamam de
mistério, de magia. Sei que rasurar e
rezingar contra imagens e falinhas
mansas foram os modos que soube,
que pude, para estancar o medo
- sem dar por isso eram já armaduras,
asfixia -. Quiçá da razão, do ser-se
adulto. Deve ser. Não devem faltar
as análises, os argumentos, a argúcia.
Acontece que, ainda vivo, ainda
com o mesmo corpo, talvez como
analgésico, dou por mim mais atento
a sofrer contigo as estórias
de quantos, prisioneiros, pedem fora,
ao mundo, as razões e emoções
para uma dor que mesmo fingida
deveras sentem. E gostaria, como tu,
que a vida fosse tão-só o que é
sem que me sentisse espectador ou cúmplice.
Gostaria que não doesse tanto


poemas inéditos retirados da revista Relâmpago nº12 - Nova Poesia Portuguesa