Isto anda mesmo tudo ligado
Na sua última crónica no suplemento Mil Folhas do jornal Público, a Ana fala-nos do Tonino Guerra e do(s) Tarkovski:
(...)Tenho aqui a fotografia da capela dedicada a Tarkovski, feita por Tonino; lembro-me de "Il libro delle chiese abbandonate" (e como é bela a capa do livro, um pastel do autor, como são belas todas as capas destes livros). Há uma pequena igreja abandonada, sem tecto, dentro da qual cresce uma cerejeira. Em Abril surgem as flores, depois os frutos, que são comidos pelos melros e pelos pássaros selvagens. Quando alguém entra naquele espaço e reza, e uma das folhas cai, a graça é concedida. Mas Andrei Tarkovski, que tinha um pedido muito grande a fazer, passou ali em Novembro, e as folhas já tinham caído todas. Tarkovski e Tonino Guerra trabalharam juntos no argumento de "Nostalghia". Há poucos meses Tonino disse-me para rever o filme, porque tinha a ver com a nossa história, e com o fresco que ele encontrou num mosteiro da Rússia, o fresco no qual os anjos desdobravam os céus no princípio dos tempos. (...)
Por seu lado Tonino Guerra diz isto do seu amigo:
As folhas da cerejeira
A André Tarkovsky
Por cima de Casteldeci há uma igreja sem tecto e as paredes têm entre os braços uma cerejeira que cresceu no chão e cujos ramos tocam o céu.
Em Abril floresce e a brancura desliza da árvore até ao fundo do vale, depois nascem os frutos e comem-nos os melros e os pássaros bravos; entretanto as folhas ficam vermelhas e uma de cada vez caem ao chão.
Se alguém assoma àquelas paredes com o desejo de pedir um milagre e há uma folha que cai nesse momento é sinal que de lá de cima terá uma resposta boa.
Tarkovsky passou lá em Novembro e precisava de fazer um pedido grande, mas as folhas já tinham caído todas e serviam de cama a duas ovelhas que dormiam.
No mesmo suplemento, mas noutro texto, Ana fala-nos do poeta Mário Rui de Oliveira que por sua vez traduziu Tonino Guerra (Histórias para Uma Noite de Calmaria e O Mel) e que fala de Giacometti e Mark Rothko, sempre recorrentes nos textos da Ana:
Em estado puro
Numa das esculturas de Giacometti, tocadas ainda de fogo, um homem caminha, em movimento solitário e eterno. Não sabemos se entra, se sai da morte, mas conseguimos reconhecer, na nobreza do cobre, a própria condição humana. Como benção ou danação, o escultor devolve- nos a vida em estado puro. Viver é também isso. Percorrer um campo de anémonas, quase com vergonha do que trazemos escondido, na mão.
Mark Rothko
Mede a tapeçaria como quem entra no santuário e quebra o espelho de uma ausência. Suas cores são um milagre. De púrpura violácea, de púrpura escarlate, de púrpura carmesin.
Realmente isto anda mesmo tudo ligado, ou como diz o próprio Mário Um amigo é uma história que nos salva.