março 05, 2004

Nova Poesia Portuguesa II

José Miguel Silva




Nasceu em 1969


Livros editados:
O sino de areia, Gilgamesh, 1999
Ulisses já não mora aqui, & etc, 2002
Vista para um Pátio seguido de Desordem, Relógio Dágua, 2003




Contra os optimistas

Chamam destino ao rifão do acaso
e chamam à fraude boa fortuna.
Crêem no Batman e na Virgem Maria.
Duvidam do frio, não da polícia
e nunca dão crédito àquilo que vêem.

Reservam a tempo um lugar na geral,
põem o pé entre duas ciladas
e ficam a rir-se nas fotografias.
Sujam a roupa tal como nós, mas
mandam-na sempre a lavandarias
que sabem tratar dos casos difíceis.

Nunca dão ponto sem antes o nó,
mas fazem um laço por cima do nó.
Compram revistas de aval científico
em cujos artigos se prova o seguinte:
é quase impossível determinar
se é falsa uma lágrima ou se é verdadeira.

Depois, jantam em grupo, falam dinheiro,
guiam a vida por grandes veredas e ouvem
sininhos, muitos sininhos de música sacra.


Estava eu sentado

Estava eu no segundo passo da ditosa via sacra
da contracultura - charros, beatniks, Guy Debord -
quando dei comigo a ler um poeta conservador
e a pensar na beleza enigmática das suas imagens,

na mesa posta com autoridade; uma força
que me remetia para a precisão do mal e para
a contraposta redenção estética da vida.
Nessa altura conheci um rapaz que me dizia

as coisas mais desagradáveis, por exemplo:
"nem oito nem oitenta" ou "cuidado com
as vírgulas nos olhos". Foi ele que me ensinou
a não confundir a fome com a pressa de comer.

A condição natural do jovem lobo, dizia,
está na via sinuosa. As paredes de neve
cada vez mais alta, a vida retirada...


Mudar de casa

Para a Renata Botelho

É bom mudar de casa, de janela,
arrumar de outra maneira as ilusões,
tratar de coisas puras como tintas
e sofás, pôr ordem entre os livros
e a vida, simular a liberdade.
Parece-nos possível voltar a acreditar
na mão que nos estende um pé de salsa,
na pechincha da beleza, quando passa
no poente da razão.
Apetece cometer uma loucura,
comprar um telescópio, decorar
o canto nono dos Lusíadas,
subir umas escadas do avesso,
pensar que nunca mais teremos frio.


Não sei se são os trinta anos

Não sei o que se passa comigo:
cada vez me assusta mais a solidão.
Aos vinte anos, aos vinte cinco,
figurava o paraíso como um quarto vazio,
onde o silêncio de um Iivro ressoava
pela noite dentro. Protegia dos amigos
minhas horas, dos irmãos, dos apelos
do telefone. Como um cego de nascença,
estudava a escuridão. Sonhava-me
recluso numa ilha de fragais, rodeado ,
de trincheiras, distante de pracetas,
acenos, convites pra jantar.
O lamento era o meu hobby preferido.

Não sei se são os trinta anos, a chuva,
o sabor de mais um dia derrubado
nos transportes colectivos,
a queda maligna das primeiras folhas;
não sei o que é, talvez o teu amor
comece, pouco a pouco, a civilizar-me.
Agora, se chego a casa e tu não estás,
corro a pôr música, abro janelas,
agarro-me ao telefone, como um náufrago,
incapaz de suportar por um segundo
o terror emboscado debaixo da cama,
atrás das estantes, dentro de mim.


poemas retirados dos livros Ulisses já não mora aqui, & etc, 2002 e Vista para um Pátio seguido de Desordem, Relógio Dágua, 2003