abril 23, 2004

Ninguém é mais pobre que os mortos


Não sei se você já morreu. Estou a escrever isto num comboio que atravessa a França de Montepellier a Paris, os solavancos da carruagem tornam-me a letra esquisita e não sei se você já morreu. Quando o vi no hospital do cancro, magríssimo, sem cabelo, sem forças, quase incapaz de falar, pensei
- Vai durar um ou dois dias, uma semana no máximo
e portanto não sei se você já morreu. Na cama ao lado da sua um homem olhava para mim de uma maneira que não vou esquecer, parecia um bicho aterrado. Você tinha atrás de si a fotografia da equipa do Belenenses, escrito à mão na fotografia - porque não havemos de ser campeões?
e mesmo que sejam campeões você não saberá porque você vai morrer. Vai morrer aos trinta e quatro anos (cedo não é?) vai morrer de cancro, não há um centímetro do seu corpo que não esteja apodrecido pelo cancro, você vai morrer Tó, você vai morrer. Vai morrer enquanto eu, em França, vivo o sucesso do meu livro, dos meus livros, tenho a imprensa e os leitores aos pés, o editor trata-me como se eu fosse (e sou) a criatura mais preciosa deste mundo, os críticos pulam de alegria, ando de apoteose em apoteose e você vai morrer, Tó, vai morrer e, se calhar, pelo facto de ir morrer, pensa que pode obrigar-me a pensar em si o tempo inteiro, a não ligar a esta barulheira à minha volta, a esquecer que sou um génio, que fui eu, não o Belenenses, quem ganhou o campeonato este ano, pensa que pode ocupar as minhas noites com o seu sorriso, a sua coragem, os seus dedos magríssimos a apontarem uma televisão pequenina
- Faz-me companhia
e as pálpebras a fecharem-se, exaustas, a sua dignidade, a sua ausência de pieguice, a sua morte tão próxima, Tó, a sua morte aqui mesmo porque você vai morrer. Ninguém é mais pobre que os mortos, disse uma escritora americana que também morreu nova, você não é só pobre morto, Tó, foi também pobre vivo, não tem o direito de perseguir um homem importante como eu (quem é você ao pé de mim, você não é nada ao pé de mim, você não sabe que não é nada ao pé de mim) deixe-me em paz, não me aborreça com a sua vontade de viver, a sua vontade de lutar, não seja mais valente do que eu (você não é nada ao pé de mim) porque sou eu que estou vivo, Tó, e você vai morrer, não me atormente com os seus projectos, os seus planos, você sente que vai morrer, Tó, você vai morrer.
Ao sair do instituto do cancro, depois de visitá-lo, só tive ganas para me encostar a uma coluna e permanecer ali, estupidamente, a olhar os arbustos, as árvores, as pessoas que entravam, o seu pai que tirou o lenço do bolso das calças quando a voz lhe tremelicou um bocadinho, o seu pai que se recompôs logo, Tó, num pudor que me custou ainda mais, o seu pai
- São uns dias
e você lá dentro, perto da janela, a morrer. Disse-me
- Gostava que lesse umas coisas que escrevi
isto não na visita ao instituto do cancro, um tempo antes, pelo telefone, eu
- Claro que sim
para não contrariar um moribundo, um rapaz de trinta e quatro anos todo roído pela doença, eu sem a menor intenção de ler fosse o que fosse, a desculpar-me, calado
- Não posso ler tudo o que me mandam e, no entanto
- Claro que leio, Tó, claro que leio
tentando ser agradável para si porque você é pobre, porque ninguém é mais pobre que os mortos e você vai morrer. Vai morrer e devia ter tido a educação de não me arrastar na sua morte trazendo-me à cabeça pessoas de quem gostei e que partiram, morreram de uma morte igual à sua, Tó, morreram e deixaram-me e agora é a sua vez, percebe, não tenha esperança, Tó, desista, não adianta ter esperança porque você vai morrer, está a morrer, você está a morrer e eu aqui, no estrangeiro, no meio deste aplauso todo (que vitória a minha, inveje-me) a voltar para o hotel, a fechar-me no quarto e a vê-lo o tempo inteiro à minha frente, Tó, o seu sorriso, o seu aperto de mão sem energia alguma, os seus gestos sem força e não se iluda que você vai morrer, não me mace com os seus planos (você não tem espaço para planos) os seus projectos (não há-de cumprir nenhum projecto) os seus sonhos (que veleidade a sua, ter sonhos) acabe com as fantasias, Tó, você vai morrer, um dia ainda, dois dias, cada vez mais sonolência, mais morfina, vai morrer longe de mim, em Lisboa, no meio dos outros cancerosos que vão morrer também, você vai morrer. Na janela do comboio árvores, rios, o sol, calcule, calor, calcule, um tempo lindo para mim, não para si, o tempo terminou para si, logo telefono para casa
- O Tó? (e, se calhar, um silêncio, o mais provável é que um silêncio, eu)
- O Tó?
e então, no meu ouvido
- O Tó morreu, sabias?
- O Tó morreu. Vou acabar isto, amigo, escrevi demais sobre a sua morte sem importância alguma, sobre os seus trinta e quatro anos sem importância alguma, quem era você? Por quem se toma você? Só acho que isto é um pesadelo, Tó, que não é verdade, só acho que nada disto é verdade, só quero achar que nada disto é verdade, percebe, garanta-me que nada disto é verdade, garanta-me que não morrerá, Tó, não morrerá, eu leio-lhe os contos, prometo, e pode ser que goste deles porque simpatizo consigo, porque (acho eu) gosto de si, porque me dói vê-lo morrer, Tó, faça-me um jeitinho, não morra, diga-me, com a sua cara magríssima, os olhos apagados, a boca sem cor que não morrerá, que, com um pingo de sorte, o Belenenses há-de ser campeão e precisa de viver para assistir a isso, precisa de assistir a isso, Tó, o Belenenses campeão, imagine a alegria que vai ser, meu Deus, o Belenenses campeão.


crónica de António Lobo Antunes
na revista Visão de 9 de Outubro de 2003