abril 22, 2004

Um só acorde


de ti e de mim fazer um só acorde,
um acorde só.
Eugénio de Andrade


Sei que me recordas hoje, por dentro de um sonho que se fixou em mesas de café e em flores, que sentes o mesmo em cada esquina em cada criança que vês passar ou nascer. Vês sempre nascer crianças quando recordas o sonho lá no fundo do quarto branco do hospital
sou eu
és tu que escreves por cima do ombro, no jornal da manhã de ontem que te trouxe do quiosque ao lado do café, de frente para o quarto. Foi no café que te vi uma vez, a primeira,
ou no outro
pessoas em volta e o som confuso da hora que já se tinha perdido.
crianças.
Sonhos ainda de crianças, de mães, partos de filhos adoptados que não querias sentir. Ser mãe, recordas o café em que foste mãe a primeira vez? O mundo em que ele nasceu, as mesas, o quarto branco do hospital, recordas o quarto branco em que ainda estás, já não o vês. Sei que me recordas uma vez e depois esqueces. Toda esta gente que conta os minutos que já perdemos e voltamos a perder. Dentro do carro,
na praia
quantas vezes viste a praia sem ser de dentro do carro, frio, tanto frio e o cobertor que não chega. O verão. Foi no verão e é outono nesta janela, no quiosque com vista para o quarto, para os jornais que escreves comigo por cima do ombro. Na praia, sabes, ser mãe do mar e da areia, não sair do carro e nem estrelas pelo nevoeiro, pelas luzes por tudo se embaciar, ser tudo no espaço de um minuto que não vi e depois nada. Sem desencontros. Nada.

Aos poucos as horas repetem-se também, e os sonhos continuam a não fazer sentido,
flores e fumos
crescem em redor dos dedos que se envolvem, dos olhos que sentem e dizem o que mais ninguém, sentes? Não podes, três minutos,
uma hora
sais e não podes, o que será da noite sem o beijo, falas e dizes-me tudo, não oiço, não quero, saio e, não saio nunca, saio e deito tudo fora, não tenho segredos. Não ouviste, os pássaros e a força do vento no meu beijo,
teu
que teima em se repetir no mesmo gesto, ir à praia e não sair do carro, o beijo que apaga as estrelas e embacia tudo. Repetes as palavras no meu peito e nos meus dedos, em tudo, só porque não sentes os poetas, sais,
saio
sais e deixas a porta aberta o mar que embacia tudo, o beijo que sai e fica no carro e na praia com vista para o quiosque na mesa do quarto do hospital. E da janela é outono, é sempre outono na janela. Foi no verão e é outono, outro e outro, são sempre as crianças que medem o tempo. Hoje é aqui e amanhã. Recordas hoje, sonhas uma esquina de um quarto entre portas, como mãe no escuro e o filho que sente no escuro do ventre. Sinto, mãe, o ventre é cá fora é dentro do quarto, do hospital, o ventre é no homem que vende os jornais sem um sorriso e na caneta que me escreve os dedos, mãe, não saí do ventre, fiquei com os vidros embaciados a tentar ver as estrelas enquanto o outono e as palavras das crianças.
As flores.
No sentido de tudo voltar a ser como era, o sonho de ser mãe numa mesa de café, com pássaros e jornais, frio. Tenho tanto frio neste quarto de hospital, paredes brancas e o jornal que me aquece os pés, que o cobertor não chega. Quem ficou a ver o mar pelos vidros do carro, mãe? Que faz aquela criança lá fora e eu abraçada ao quiosque e ao Sr. que vende jornais sem um sorriso,
as flores,
o sangue nos dedos, na escrita, o meu peito que cresce para o mar. Ver-te fora do café, num beijo, sem um sorriso, com todo o tamanho do mundo. Sei que recordas hoje a noite em que sais-te e o mar embaciou o beijo e o colou aos vidros,
sei.