Os Invisíveis
Há livros que gostaríamos nunca mais acabassem. Não só porque fim é uma palavra terrível. Mas também porque é como se algo dentro de nós, depois de ter encontrado um modo nosso de falar, que nos surpreende e emociona, se interrompesse e nos voltasse a ficar interdito. Conversas assim, raras, intensas, fazem-nos sentir outros e é pois com tristeza que assistimos ao seu término. Os Invisíveis, primeiro livro de prosa de Ana Paula Inácio (n.1966) é um desses livros. Comove-nos, escava nos terrenos lodosos da alma e remexe nessa ferida com o cuidado cirúrgico de um especialista. Lê-lo é uma experiência intensa. No entanto e à primeira vista estamos perante histórias de gente comum. Tão comuns que certos acontecimentos podem até ter sido vividos por nós com características semelhantes. Viver, contudo, não significa necessariamente pensar. E talvez se dê o caso de, avassalados pelas mil pequenas coisas do dia-a-dia, nunca nos ter passado pela cabeça que certos momentos foram uma experiência de crueldade, até porque certas crueldades não possuem código penal, tampouco são notícia ou encontram espaço entre o vendável. Ora os doze contos deste livro são sobre a crueldade. Ou, se se preferir, são sobre a ficção em que vivemos, sobre a quimera da soberania de indivíduos à deriva na barca de Caronte. São sobre essa sempre qualquer coisa que nos distrai, ocupa, toca e faz sair de nós mesmos e nos mergulha no infame, na invisibilidade.
Doze contos. Doze histórias breves. Muito breves. Com homens e mulheres à deriva. Seres vulgares, mas seres humanos. Com pensamentos e sentimentos. Todos no descontentamento de si ou do que os rodeia. Todos perdidos no espaço e no tempo que lhes coube em sorte. E de que a autora fala com contida emoção, desdobando a meada de uma solidão sem esperança, enquanto entre o cáustico e o enternecida nos torna cúmplices ou carrascos da vida dessa gente.
Mais do que retratar pessoas avassaladas pelo nada, sem outra coisa além da casa ou da rua e mesmo aí perdidas, invisíveis, aborda com um hábil e delicado sentido de observação a vida tal como é vivida por quantos são, quase sempre e só, consumidores de sonhos, derrotados de esperança. Gente que vive além do trabalho, do amor, do diálogo, pois essas são formas de êxtase que lhes foram recusadas, por excesso ou por falta, e a quem não resta nada senão a morte esplendorosa, porque chave de um além que é o fim do sofrimento. Indivíduos que se colocam, pois, entre parêntesis e mantêm a ilusão de viver. Indivíduos encerrados e condenados ao covil dos hábitos, com existências terrivelmente monótonas, qual castigo que sofrem em silêncio. Não se trata de masoquismo, porque não retiram daí nenhum prazer, mas da assunção de uma tragédia e tragédia grandiosa porque cheia de gente. Uma tragédia onde raramente se ouvem queixumes, pois são mais os desabafos e quase sempre breves, num desfastio próprio de quem se habituou a sofrer.
Carlos Bessa