Telhados de Vidro Nº 2 - que diria a tua à minha morte?
O nº 2 da revista de poesia Telhados de Vidro, publicação não periódica da Averno, editada por Inês Dias e Manuel de Freitas, traz-nos José Miguel Silva, Rui Pires Cabral e Kavafis, para além do próprio Manuel. Traz também a Renata Correia Botelho desde o prinípio das águas, com a poesia cá de casa, ou outra forma de ser a Ana Paula Inácio e a Ana Teresa Pereira. Uma poesia sem maiúsculas que a seguir transcrevo na íntegra. Para ler até ficar na memória das mãos.
a mesa está posta de ervas
para dois, esperam-nos
melros e canteiros.
no jardim, sabem que fomos
com o musgo, com os grilos,
para o colo da terra,
somos agora parte
da primavera, nunca estivemos
tão chegados ao mundo
tão dentro de casa.
//
disseram-lhe que era tempo de dar
domingo às mãos. grafou no punho
o último anzol,
encolheu-se entre as algas estendidas,
mapas enxutos de sal,
o seu corpo rolava com os seixos
nada divide os filhos da água.
//
é sempre a mesma curva
cega, neste troço de pedra lascada,
não há como escapar
às primeiras chuvas
ao piso escorregadio dos olhos,
despiste, falésia mortal,
o coração não entende
sinais vermelhos.
//
em quantas dores se reparte
um corpo, o espaço
húmido de boca a boca,
centro exacto do fim
para onde apontas
a seta
és o teu arqueiro.
//
longas veredas de silêncio, as sombras
estendem-se pela quebrada, voltam
à pedra. asas e lírios recolhem
restos de cor, a noite
leva as chamas para o princípio
das águas; amanhã, teias de luz
dão à costa e a gaivota traz no bico
gotas de vitral.
//
plantas os dias em
ramos de hera, assim
ganhas terreno
vivo, a palmo
que diria a tua à minha
morte?
Renata Correia Botelho
Telhados de Vidro Nº2, Editora Averno, Maio 2004
(páginas 37 a 42)