Dona Lurdes
No sábado passado, ao passar pelo jardim da minha infância, aquele em que joguei à bola, depois das aulas, enquanto a minha avó esperava, sentada num banco de madeira, com o lanche de sandes com queijo e leite de pacote, reparei que o quiosque que se situa numa das pontas do jardim tinha as portadas fechadas. Uma cruz preta impressa num papel branco, A4, indicava-me o óbvio. A Dona Lurdes morrera.
Desde sempre me habituei a ver aquele espaço ocupado por uma construção tosca de chapas de metal dobradas e recortadas, de forma a caber lá dentro um balcão, vários escaparates para revistas, caixotes para livros de banda desenhada e a Dona Lurdes, já na altura com um aspecto bastante velho, daquelas pessoas que parece que foram sempre velhas. Nessa altura passava ao longe, não me interessava nada daquilo que tinha para me vender, não era ainda o tempo da mesada, ou da semanada. Quando ela veio, e a idade era outra, comecei por me aproximar pelos cromos, da bola e não só, pelas carteiras de surpresas que traziam autocolantes, chupas, pastilhas, rebuçados, depois pelos livros de banda desenhada, pelas aventuras da Marvel e da DC comics traduzidas para português, do brasil, pela Abril. Mais tarde já em português de portugal. Mais tarde ainda veio o gosto e o interesse por outras revistas, de computadores, de surf, etc etc etc. Tudo isto comprado na Dona Lurdes, por devoção, por convição, por fidelidade, porque ali era o nosso mundo, meu e dos meus amigos de infância e de bairro. Só troquei (trocámos) a Dona Lurdes e os seus imensos cães sempre presentes, quando os interesses levaram a outros livros e outras revistas que não se encontram num quiosque de bairro. Era uma relação de quase intimidade, de cumplicidade, nunca nos sugeria nada, nunca nos impunha nada, mas guardava sempre o que lhe pedíamos e aquilo que achava que nos podia interessar.
Enquanto isso nunca repáramos que a Dona Lurdes ia envelhecendo. O jardim era, e é, um jardim de velhos, que se arrastam pelos bancos de madeira e as mesas quadradas, em ferro, pintadas de verde e rodeadas cada uma de quatro cadeiras, também de ferro e verdes, presas ao chão. Por vezes jogam às cartas, mas a maior parte do tempo passam-no a dormir. Sei-o porque os vi, tardes sem fim, já depois da época dos jogos da bola, numa altura em que eu e os meus amigos de infância fomos velhos também, arrastando-nos pelos bancos em conversas e contemplações intermináveis, a comer chocolates zainy crispy e pacotes de batatas fritas, comprados no quisoque na Dona Lurdes. Sempre o chamámos assim, apesar de ela o ter batizado com o nome de um dos seus cães, que morrera atropelado, qualquer coisa acabado em inho de que não me lembro agora.
Este jardim era também ocupado pelos melros, já habituados às pessoas que passavam por ali. Quase me tinha esquecido deles, mas agora recebo noticias do meu jardim de infância via sms. Um dia é o abandono da relva por cortar e a chuva, no outro o sol e o cheiro bom da relva acabada de cortar. Lembro-me também, mas isto não pode saber quem me envia os sms, dos dias de tempestade seca, em que os relâmpagos iluminavam o longo corredor que leva à igreja ao fundo. Lembro-me de trocar cheques por dinheiro no quiosque da Dona Lurdes, num fim de semana comprido em que todos os multibancos da zona ficaram sem dinheiro. Lembro-me do cão Dick, que sempre que fugia era atraído pelo cio das cadelas que rodeavam sempre o quiosque da Dona Lurdes. Lembro-me do dia em que a Camara ou a Junta, não sei, ofereceu um quiosque novo à Dona Lurdes, pouco maior que o anterior, mas mais moderno e funcional, em que ja não era preciso recorrer aos plásticos, nos dias de chuva, para tapar jornais e revistas. Lembro-me da última conversa que tive com a Dona Lurdes, num domingo de sol, perguntei-lhe por um livro que tinha saído com o jornal Público, nesse dia, disse-me com um ar triste, já não tenho, já acabou, encolhendo os ombros como que a lembrar-me que já houve um tempo em que nem era preciso perguntar, o livro estaria ali guardado, como era normal para os clientes habituais, mas agora...
Agora as portadas estão fechadas, a Dona Lurdes já só existe naquilo que dela nos lembramos. E o jardim continua, lentamente captado em momentos, pelas janelas dos autocarros. O decorrer normal da vida levou-me a outros bairros e inevitavelmente a outros quiosques, outras papelarias. No sitio onde moro ainda não consegui convictamente adquirir o hábito de ir sempre ao mesmo sitio, vou talvez mais por preguiça e conveniência do que outra coisa. Sei que nunca vou encontrar outro sitio onde a confiança, a genenrosidade e a amizade sejam tão sinceras.
Desde sempre me habituei a ver aquele espaço ocupado por uma construção tosca de chapas de metal dobradas e recortadas, de forma a caber lá dentro um balcão, vários escaparates para revistas, caixotes para livros de banda desenhada e a Dona Lurdes, já na altura com um aspecto bastante velho, daquelas pessoas que parece que foram sempre velhas. Nessa altura passava ao longe, não me interessava nada daquilo que tinha para me vender, não era ainda o tempo da mesada, ou da semanada. Quando ela veio, e a idade era outra, comecei por me aproximar pelos cromos, da bola e não só, pelas carteiras de surpresas que traziam autocolantes, chupas, pastilhas, rebuçados, depois pelos livros de banda desenhada, pelas aventuras da Marvel e da DC comics traduzidas para português, do brasil, pela Abril. Mais tarde já em português de portugal. Mais tarde ainda veio o gosto e o interesse por outras revistas, de computadores, de surf, etc etc etc. Tudo isto comprado na Dona Lurdes, por devoção, por convição, por fidelidade, porque ali era o nosso mundo, meu e dos meus amigos de infância e de bairro. Só troquei (trocámos) a Dona Lurdes e os seus imensos cães sempre presentes, quando os interesses levaram a outros livros e outras revistas que não se encontram num quiosque de bairro. Era uma relação de quase intimidade, de cumplicidade, nunca nos sugeria nada, nunca nos impunha nada, mas guardava sempre o que lhe pedíamos e aquilo que achava que nos podia interessar.
Enquanto isso nunca repáramos que a Dona Lurdes ia envelhecendo. O jardim era, e é, um jardim de velhos, que se arrastam pelos bancos de madeira e as mesas quadradas, em ferro, pintadas de verde e rodeadas cada uma de quatro cadeiras, também de ferro e verdes, presas ao chão. Por vezes jogam às cartas, mas a maior parte do tempo passam-no a dormir. Sei-o porque os vi, tardes sem fim, já depois da época dos jogos da bola, numa altura em que eu e os meus amigos de infância fomos velhos também, arrastando-nos pelos bancos em conversas e contemplações intermináveis, a comer chocolates zainy crispy e pacotes de batatas fritas, comprados no quisoque na Dona Lurdes. Sempre o chamámos assim, apesar de ela o ter batizado com o nome de um dos seus cães, que morrera atropelado, qualquer coisa acabado em inho de que não me lembro agora.
Este jardim era também ocupado pelos melros, já habituados às pessoas que passavam por ali. Quase me tinha esquecido deles, mas agora recebo noticias do meu jardim de infância via sms. Um dia é o abandono da relva por cortar e a chuva, no outro o sol e o cheiro bom da relva acabada de cortar. Lembro-me também, mas isto não pode saber quem me envia os sms, dos dias de tempestade seca, em que os relâmpagos iluminavam o longo corredor que leva à igreja ao fundo. Lembro-me de trocar cheques por dinheiro no quiosque da Dona Lurdes, num fim de semana comprido em que todos os multibancos da zona ficaram sem dinheiro. Lembro-me do cão Dick, que sempre que fugia era atraído pelo cio das cadelas que rodeavam sempre o quiosque da Dona Lurdes. Lembro-me do dia em que a Camara ou a Junta, não sei, ofereceu um quiosque novo à Dona Lurdes, pouco maior que o anterior, mas mais moderno e funcional, em que ja não era preciso recorrer aos plásticos, nos dias de chuva, para tapar jornais e revistas. Lembro-me da última conversa que tive com a Dona Lurdes, num domingo de sol, perguntei-lhe por um livro que tinha saído com o jornal Público, nesse dia, disse-me com um ar triste, já não tenho, já acabou, encolhendo os ombros como que a lembrar-me que já houve um tempo em que nem era preciso perguntar, o livro estaria ali guardado, como era normal para os clientes habituais, mas agora...
Agora as portadas estão fechadas, a Dona Lurdes já só existe naquilo que dela nos lembramos. E o jardim continua, lentamente captado em momentos, pelas janelas dos autocarros. O decorrer normal da vida levou-me a outros bairros e inevitavelmente a outros quiosques, outras papelarias. No sitio onde moro ainda não consegui convictamente adquirir o hábito de ir sempre ao mesmo sitio, vou talvez mais por preguiça e conveniência do que outra coisa. Sei que nunca vou encontrar outro sitio onde a confiança, a genenrosidade e a amizade sejam tão sinceras.