abril 28, 2005

Apontamento

Vaguíssimo retrato

Levar-te à boca,
beber a água
mais funda do teu ser -
se a luz é tanta
como se pode morrer?

Eugénio de Andrade, Obscuro Domínio

Longe da Aldeia - Rui Pires Cabral




Agora és estrangeiro em sentido
próprio, com os nervos toldados
por demasiada música. Sentado
na erva de Maio, junto à estufa
das carnívoras - Dragão Vermelho,
Sarracenia flava - a tua Primavera
tortuosa, transplantada.

Enrolas tabaco holandês, procuras
na memória um verso que melhor
explique o lastro das circunstâncias,
uma Inglaterra mais funda, deitada
à sombra da experiência
das palavras. E tal como esse
pequeno, quase imponderado
esforço, não terá sido afinal inútil
tudo o que fizeste na vida?

Rodas e repetições, é assim o tempo
na carne. Mas o que aprendeste
com o primeiro desengano não te preparou
para o segundo, o terceiro e todos
os que se seguiram. Entretanto faz sol
e o mundo existe, é quase uma pintura
de inocente intenção


Senhores passageiros

Alguns rapazes avançam mais depressa
para a morte, mas todos se debatem
com a vida que lhes resta. Às voltas
no cimento das cidades, entre
a estrangulada circulaçãos dos veículos,
segredam ao ouvido de um deus
surdo: concede-me um novo amor
igual ao dos meus irmãos. Entretanto
são mais as raparigas que não lêem livros
no venenoso relento das estações
ferroviárias, chupam rebuçados
de menta com fel, suavemente inclinam
a cabeça para ouvir: senhores passageiros
vai dar início à sua marcha o comboio
com destino a Santa Apolónia da escuridão.


Shirley Ann Eales

Na vitrina lê-se Livros Raros
e Usados sob o azul inclinado
de um toldo - mesmo em frente
à glacial cafetaria de franchise
onde o dia destrata o desejo
e não se pode fumar. Subo
aos pequenos gabinetes
mergulhados no doce bafio
da literatura e percorro de A
a Z as espinhas estreitas

e rachadas da poesia. É o sítio
mais vazio de Novembro
e o que mais me reconforta;
e o livro que escolho, por metade
de uma libra, traz no frontispício
um nome e uma morada: Shirley Ann
Eales, de Scottsville - um sumido
autógrafo de maiúsculas magras
e triangulares onde a imaginação
encontra por enquanto pretexto

e oxigénio suficientes para arder.
O teu livro teve outra existência,
pertenceu a outra casa, a outra mesa
de cabeceira - e o pensamento,
de tão óbvio, conjura de repente
uma vertigem, é um corredor
abrupto para a imensidão do mundo
onde trafica o acaso. Ah, sabemos
que a vida é improvável se damos
por nós a cismar, a meio de uma tarde

insípida, numa mulher desconhecida
que lia poemas em Scottsville, nos anos
70. Mas haverá aqui alguma espécie
de sentido, algum sinal guardado
para alguém mais sábio ou inocente
do que eu? Não sei quem és
nem onde estás agora, Shirley Ann,
mas como seria belo se pudesses
um dia encontrar, por obra da mesma
sorte, o teu nome nestes versos.


Rui Pires Cabral, Longe da Aldeia, Averno, 2005


Mais poemas do autor aqui
Outro livros do autor aqui

Ao acaso - Ficção Científica #1

entrou disposto a esquecer, com vontade de
no vazio daquele lugar rasgar no pensamento tudo
aquilo que tinha escrito até então, queimar, transformar
em cinzas, sombras de luz, todas as recordações que ainda existissem

os olhos no tecto amarelo, com grelhas para
a circulação de ar, a visão turva de fumo escuro
a parede branca em frente como tela, os móveis lentamente,
a desaparecerem, a cama, de contornos acinzentados, contrariar o tempo

o calor de um verão que queimava as vísceras
e tornava os dias maravilhosos, é tão fácil o amor
em dias e dias de sol, o longo inverno de olhares imensos
pela janela molhada de lágrimas, as tardes inteiras a olhar as estrelas

a água e o fogo num turbilhão de ideias que tudo
invadiu e destruiu, a fuga, a espera, o olhar para trás
o empurrão, as histórias construídas nos jardins de flores
que murcharam no tempo, inócuo, as folhas escritas imensas no quarto nu

histórias de um futuro que hoje vive, sofregamente,
abruptamente, ter medo de morrer num sítio estranho, onde
só existem estrelas e negro, guardar sempre o último fôlego para
depois, olhos abertos. No dia seguinte começar a escrever um novo futuro.

abril 27, 2005

Antes do mar, as águas

A causa precede o efeito; o todo resulta da união das partes.

Actualizações

Algumas actualizações nos blogs ali ao lado e alguns links novos:

amoralva

sublinhar

Peter's

Poesia Toda

webcedário

na respiração de um livro

hei-de ter-te na respiração de um livro
e ficar só num poema com um amor que não morreu
como a pálida penumbra
que me habita - casa estéril
inutilmente caiada.

mariagomes
14 de Abril de 2004

abril 22, 2005

O regresso às origens

porque me apeteceu voltar a ser torradas, a qualquer hora do dia e sem cheiros.

abril 21, 2005

O amor em visita

Dai-me uma jovem mulher
com sua harpa de sombra e seu arbusto de sangue.
Com ela encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus ombros beijarei, a pedra pequena do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade de dois seios,
com o peso lúbrico e triste da boca.
Seus ombros beijarei. Cantar? Longamente cantar,
uma mulher com quem beber e morrer.
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marítimo
e o pão for invadido pelas ondas,
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes
ele - imagem inacessível e casta de um certo pensamento de alegria e de impudor.
Seu corpo arderá para mim sobre um lençol mordido por flores com água.
Ah! em cada mulher existe uma morte silenciosa;
e enquanto o dorso imagina, sob nossos dedos, os bordões da melodia,
a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,
desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.
- Ó cabra no vento e na urze,
mulher nua sob as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
mulher de pés no branco,transportadora da morte e da alegria.
Dai-me uma mulher tão nova como a resina e o cheiro da terra.
Com uma flecha em meu flanco, cantarei.
E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue,
cantarei seu sorriso ardendo, suas mamas de pura substância,
a curva quente dos cabelos.
Beberei sua boca, para depois cantar a morte e a alegria da morte.
Dai-me um torso dobrado pela música,
um ligeiro pescoço de planta, onde uma chama comece a florir o espírito.
À tona da sua face se moverão as águas, dentro da sua face estará a pedra da noite.
- Então cantarei a exaltante alegria da morte.
Nem sempre me incendeiam o acordar das ervas e a estrela despenhada de sua órbita viva.
– Porém, tu sempre me incendeias.
Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno,
a noite imagem pungente com seu deus esmagado e ascendido.
- Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura.
Entontece meu hálito com a sombra, tua boca penetra a minha voz como a espada se perde no arco.
E quando gela a mãe em sua distância amarga, a lua estiola,
a paisagem regressa ao ventre, o tempo se desfibra
- invento para ti a música, a loucura e o mar.
Toco o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso, a inspiração.
E eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa.
Vou para ti com a beleza oculta,
o corpo iluminado pelas luzes longas.
Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar.
Teus olhos transfiguram-se,
tuas mãos descobrem a sombra da minha face.
Agarro tua cabeça áspera e luminosa, e digo: ouves, meu amor?
eu sou aquilo que se espera para as coisas, para o tempo
– eu sou a beleza. Inteira, tua vida o deseja.
Para mim se erguem teus olhos de longe.
Tu própria me duras em minha velada beleza.
Então sento-me à tua mesa.
Porque é de ti que me vem o fogo.
Não há gesto ou verdade onde não dormissem tua noite e loucura,
não há vindima ou água em que não estivesses pousando o silêncio criador.
Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos originais.
Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra a carne transcendente.
E em ti principiam o mar e o mundo.
Minha memória perde em sua espuma o sinal e a vinha.
Plantas, bichos, águas cresceram como religião sobre a vida
– e eu nisso demorei meu frágil instante.
Porém teu silêncio de fogo e leite repõe a força maternal, e tudo circula entre teu sopro e teu amor.
As coisas nascem de ti como as luas nascem dos campos fecundos,
os instantes começam da tua oferenda como as guitarras tiram seu início da música nocturna.
Mais inocente que as árvores, mais vasta que a pedra e a morte,
a carne cresce em seu espírito cego e abstracto,
tinge a aurora pobre, insiste de violência a imobilidade aquática.
E os astros quebram-se em luz sobre as casas,
a cidade arrebata-se,
os bichos erguem seus olhos dementes,
arde a madeira - para que tudo cante pelo teu poder fechado.
Com minha face cheia de teu espanto e beleza,
eu sei quanto és o íntimo pudor e a água inicial de outros sentidos.
Começa o tempo onde a mulher começa,
é sua carne que do minuto obscuro e morto se devolve à luz.
Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras com uma imagem.
Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito de sal e de silêncio,
concebo para minha serenidade uma ideia de pedra e de brancura.
És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves,
que te alimentas de desejos puros.
E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola, a sombra canta baixo.
Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua,
onde a beleza que transportas como um peso árduo se quebra em glória junto ao meu flanco martirizado e vivo.
– Para consagração da noite erguerei um violino,
beijarei tuas mãos fecundas,
e à madrugada darei minha voz confundida com a tua.
Oh teoria de instintos, dom de inocência,
taça para beber junto à perturbada intimidade em que me acolhes.
Começa o tempo na insuportável ternura com que te adivinho,
o tempo onde a vária dor envolve o barro e a estrela,
onde o encanto liga a ave ao trevo.
E em sua medida ingénua e cara,
o que pressente o coração engasta seu contorno de lume ao longe.
Bom será o tempo, bom será o espírito,
boa será nossa carne presa e morosa.
– Começa o tempo onde se une a vida à nossa vida breve.
Estás profundamente na pedra e a pedra em mim,
ó urna salina, imagem fechada em sua força e pungência.
E o que se perde de ti, como espírito de música estiolado em torno das violas,
a morte que não beijo, a erva incendiada que se derrama na íntima noite
– o que se perde de ti, minha voz o renova num estilo de prata viva.
Quando o fruto empolga um instante a eternidade inteira,
eu estou no fruto como sol e desfeita pedra,
e tu és o silêncio, a cerrada matriz de sumo e vivo gosto.
– E as aves morrem para nós,
os luminosos cálices das nuvens florescem, a resina tinge a estrela,
o aroma distancia o barro vermelho da manhã.
E estás em mim como a flor na ideia e o livro no espaço triste.
Se te apreendessem minhas mãos,
forma do vento na cevada pura, de ti viriam cheias minhas mãos sem nada.
Se uma vida dormisses em minha espuma,
que frescura indecisa ficaria no meu sorriso?
– No entanto és tu que te moverás na matéria da minha boca,
e serás uma árvore dormindo e acordando onde existe o meu sangue.
Beijar teus olhos será morrer pela esperança.
Ver no aro de fogo de uma entrega tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus
será criar-te para luz dos meus pulsos e instante do meu perpétuo instante.
– Eu devo rasgar minha face para que a tua face se encha de um minuto sobrenatural,
devo murmurar cada coisa do mundo até que sejas o incêndio da minha voz.
As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso jovem da carne
aspiram longamente a nossa vida.
As sombras que rodeiam o êxtase,
os bichos que levam ao fim do instinto seu bárbaro fulgor,
o rosto divino impresso no lodo, a casa morta, a montanha inspirada,
o mar, os centauros do crepúsculo - aspiram longamente a nossa vida.
Por isso é que estamos morrendo na boca um do outro.
Por isso é que nos desfazemos no arco do verão,
no pensamento da brisa, no sorriso,
no peixe, no cubo, no linho, no mosto aberto
– no amor mais terrível do que a vida.
Beijo o degrau e o espaço.
O meu desejo traz o perfume da tua noite.
Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua e branca das mulheres.
Correm em mim o lacre e a cânfora,
descubro tuas mãos, ergue-se tua boca ao círculo de meu ardente pensamento.
Onde está o mar?
Aves bêbedas e puras que voam sobre o teu sorriso imenso.
Em cada espasmo eu morrerei contigo.
E peço ao vento: traz do espaço a luz inocente das urzes,
um silêncio, uma palavra; traz da montanha um pássaro de resina, uma lua vermelha.
Oh amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos, casa de madeira do planalto,
rios imaginados,
espadas, danças, superstições, cânticos, coisas maravilhosas da noite.
Ó meu amor, em cada espasmo eu morrerei contigo.
De meu recente coração a vida inteira sobe,
o povo renasce, o tempo ganha a alma.
Meu desejo devora a flor do vinho,
envolve tuas ancas com uma espuma de crepúsculos e crateras.
Ó pensada corola de linho,
mulher que a fome encanta pela noite equilibrada,
imponderável - em cada espasmo eu morrerei contigo.
E à alegria diurna descerro as mãos.
Perde-se entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro da tua entrega.
Bichos inclinam-se para dentro do sono, levantam-se rosas respirando contra o ar.
Tua voz canta o horto e a água - e eu caminho pelas ruas frias
com o lento desejo do teu corpo.
Beijarei em ti a vida enorme,
e em cada espasmo eu morrerei contigo.

Herberto Helder

abril 15, 2005

De novo a casa

Ah, um dia a casa será bosque,
à sua sombra encontrarei a fonte
onde um rumor de água é só silêncio.

Eugénio de Andrade, Metamorfoses da Casa, Ostinato Rigore, 1964



Diz-me da casa como sangue e como boca
musical amante do branco, no branco,
das pequenas pedrinhas incrustradas
e das conchas, na areia das paredes.
Diz-me da terra como dos líquidos
do nevoeiro, que não é uma coisa
nem outra, espuma de céu e de bicho
nas mãos que rasgam e roem.
Diz-me de tudo como no ventre
o eterno retorno, a respiração
por dentro, os romances e as personagens
por quem te apaixonas, que te amam.
Diz-me, ou então fala, que eu escuto.

abril 07, 2005

A casa

Persigo aqui outros dias, outras palavras
escrevo contra o que acredito,
de arremesso,
assim sou do que eu nasci
que a vontade não me morra
no desejo de ser luz;
por entre estas paredes espero
o estremecimento
diário, à mesa, na cama
no ventre das canalizações,
que leve ao centro;
deve haver um caminho
para regressar ao que
sempre fomos e habitámos.


A ausência podia ter sido aqui

mas não foi