julho 30, 2004

Alice no país dos matraquilhos

Pois é, faz hoje precisamente uma semana que a Ana 'mudou de vida'. Ou seja, que terminou o seu blog Alice no país dos matraquilhos (título 'roubado' a uma canção do Sérgio Godinho). Descobri-a através do Vincent, gostei, li tudo o que tinha escrito para trás e depois acompanhei-a para a frente. Nem sempre concordei com o que dizia. Mas sempre, sempre, gostei muito da forma como o dizia. Apaixonada, atenta, desesperada por vezes. Partilho algumas das suas paixões, dos seus gostos, outros abomino visceralmente.
Agora que o luto deste fim, já esperado, tem sete dias, é tempo suficiente para dizer que desejo redescobri-la noutro sítio qualquer o mais breve possível. Nunca fui muito bom na arte dos matraquilhos, sempre fui melhor a defender ('à baliza', na giria da coisa), mas agora gostava de passar ao ataque e dizer-te, Ana, que essa autenticidade é do melhor que conheço. Ah, e que há muito mais gente a gostar e a ouvir Fausto, do que aquilo que tu pensas, acredita.

julho 29, 2004

Latin'América

Este verão era bom uma viagem a qualquer um destes países. Não sendo possível, pelo menos um concerto do Luís Portugal. Alguém sabe o que é feito dele? Existem aqui algumas dicas mas já são antigas. Fica a letra da embelmática música dos anos 80, para cantar bem alto.

Jáfu'Mega
Latin'América
Música: Eugénio Barreiros
Letra: Carlos Tê

Todas as manhãs o sol espelha
Bate nas frentes escuras
O sangue jorra de esguelha
Na pala das ditaduras

Continente gritador
Rebenta pelas costuras
A morte, o medo e o terror
São dias feitos agruras

Do Paraguai a Porto Rico
Salvador às Honduras
Da Bolívia à Guatemala
Argentina ao Chi-i-i-i-ile

Latin' América
Latin' América
Latin' América
Latin' América

Descem das montanhas
Para pôr fim a essa sina
Que te rebenta as entranhas
Um capacete em cada esquina

(solo)

Todas as manhãs o sol espelha
Bate nas frentes escuras
O sangue jorra de esguelha
Na pala das ditaduras

Do Paraguai a Porto Rico
Salvador às Honduras
Da Bolívia à Guatemala
Argentina ao Chi-i-i-i-ile

Latin' América
Latin' América
Latin' América
Latin' América

(palmas)

pa-ra-po-ri-po-raum-de-ro

pa-ra-po-ri-po-raum-de-ro

pa-ra-po-ri-po-raum-de-ro
pa-ra-po-ri-po-raum-de-ro
pa-ra-po-ri-po-raum-de-ro
pa-ra-po-ri-po-raum-de-ro

(solo)

Do Paraguai a Porto Rico
Salvador às Honduras
Da Bolívia à Guatemala
Argentina ao Chi-i-i-i-ile

Latin' América
Latin' América
Latin' América
Latin' América

Latin' América
Latin' América
Latin' América
Latin' América

julho 26, 2004

Último soneto

Que rosas fugitivas foste ali:
Requeriam-te os tapetes – e vieste...
– Se me dói hoje o bem que me fizeste,
É justo, porque muito te devi.

Em que seda de afagos me envolvi
Quando entraste, nas tardes que apareceste –
Como fui de percal quando me deste
Tua boca a beijar, que remordi...

Pensei que fosse o meu o teu cansaço –
Que seria entre nós um longo abraço
O tédio que, tão esbelta, te curvava...

E fugiste... Que importa ? Se deixaste
A lembrança violeta que animaste,
Onde a minha saudade a Cor se trava?...

Paris - Dezembro 1915

Mário de Sá-Carneiro
Poemas Completos
Edição Fernando Cabral Martins
Assírio & Alvim
2001


Obrigado AB pela dica


julho 23, 2004

Porque gosto muito desta foto

Paredes

Fica aqui a música do génio e a verbalização do que me ocorre quando a ouço:

sol, lenha, rua, memória, interior, ossos, mar, nitidez, acaso, alguém, vagas, pele, rebentação, sangue, orgãos, vísceras, forme, lisboa, superfície, coração, água.

Procura-se poema perdido de Mário Sá Carneiro

ou a expressão enigmática de que fala o Nava. Alguém sabe qual é?

Final

Não foi sem dificuldade que este livro rompeu através dos intersticios do mundo até chegar às tuas mãos, leitor, para aí, como um deserto a abrir noutro deserto, criar uma irradiação simbólica, magnética, onde o branco do papel e o negro das palavras, essas cores que segundo Borges se odeiam, pudessem fundir-se e converter-se nessa outra a que, na enigmática expressão de Sá Carneiro, a saudade se trava. Como um desses objecto cujo peso, assim que neles pegamos, instantaneamente se divide entre as nossas mãos e a alma, é mesmo de crer que ele esteja já dentro de ti, e algo de mim com ele. Acolhe-o, pois, com benevolência, que, chegada a altura, havemos de arder juntos.


Luís Miguel Nava, Vulcão, Poesia Completa, Publicações D. Quixote, 2002

Hoje acaba a guitarra portuguesa

Pois é, este verão de 2004 está a levá-los a todos. Não me venham dizer que a morte era esperada. Nunca é. Nem mesmo quando a doença consome durante tempo a mais. Nunca estamos preparados para o luto, e principalmente para a dor de perder quem nos deu tudo. Ainda mais quando esse tudo é da mais fina e pura arte que conheço. Um mestre, dizem. Um companheiro, digo. Que hoje me partiu a guitarra e o coração.

A Guitarra

Paredes
É assim que o recordo, de cabeça a pender sobre a guitarra, cabelo solto, mãos longuíssimas e fervilhantes. Recordo-o num concerto, numa das salas do Palácio de Queluz, eu na primeira ou segunda fila, dez anos de idade, ele em cima de um pequeno palco com 30 ou 40cm de altura. Recordo o som e a energia que vinha daquela figura magra e quase frágil. Recordo também, 8 anos depois, um projecto de concerto que acabou por não o ser, devido ao inicio da sua doença. Estávamos em 1993. Desde então foi o limbo, entrecortado aqui e ali por colectâneas e homenagens à sua obra. Hoje não é o dia para recordar que sempre foi 'mal apreciado' em vida, outras alturas virão.
Hoje, habito as mesmas ruas de Benfica que ele. Sempre, esta múscia e esta imagem fazem parte de mim.

julho 21, 2004

O lado esquerdo

Devo ser canhoto, ou esquerdino. Gosto, como diz o outro, de me deitar sobre o lado esquerdo do coração. Uso a 'parte' direita do meu corpo para quase tudo. Abraço quem comigo andar na rua com o braço esquerdo, para deixar o direito livre em caso de necessidade (uma forma de pretecção, dizem, que provem do nosso lado mais animal). Escrevo com a mão direita, no teclado com as duas. Aponto, bato,aperto, marco o código do multibanco com os dedos da mão direita.
Sempre me surpreende esta capacidade (será?) de chutar com o pé esquerdo, levar a colher à boca com a mão esquerda, segurar o ciagrro entre o indicador e o polegar da mão esquerda. E porque a maioria de nós não é canhoto, temos a sensação de que algo errado se passa. Será o cérebro que é diferente ou funicona só de maneira diferente. E será que há diferenças entre 'nós' ou somos mesmo todos iguais?
Por vezes tenho a sensação de que faço tudo torto. Será esse o meu lado esquerdo?

julho 20, 2004

Volta a Portugal em bicicleta



Começa dia 29 de Julho, nas Termas de Monfortinho, e termina a 8 de Agosto, em Sintra, a 66ª edição da Volta a Portugal em Bicicleta.
A subida à Torre, dia 6 de Agosto, parte do Fundão, passa por Unhais da Serra, Alvoco da Serra, Loriga, São Romão, Sabugueiro e Manteigas. Deixa 'ao lado' a 'tradicional' subida pela Covilhã, as curvas do Sanatório, dos Carqueijais e as Penhas da Saúde, indo apanhar a 'estrada da Torre' apenas nos Piornos. Mas quem conhece a zona sabe que a estrada Manteigas - Piornos é das mais dificeis, e das mais bonitas também. Recordo o contra-relógio individual da edição de 2001, que com apenas 22,5 km de extensão, arrasou com as esperanças de vitória dos menos avisados.
A edição da volta deste ano é mais curta do que o habitual e tem alguns traçados 'alternativos' interessantes. Para acompanhar na estrada, de boné, banquinho desdobrável, bandeira portuguesa e garrafão de 5 litros do branco (fresquinho dentro da geleira). De preferência viajar de roulote, própria, emprestada ou alugada, tanto faz.



Nem a propósito

Vivemos o tempo dos assassinos
Tempo de todos os hinos
Ouvimos dobrar os sinos
Quem mais jura
É quem mais mente


Jorge Palma, Tempo dos assassinos

IWC 2004

Cachalote


Mais informações sobre o International Whaling Commission aqui.
Mais sobre baleias aqui ou aqui.





julho 16, 2004

Com a tripa encostada ao balcão

Taberna


Um café e um bagaço, perdão, uma macieira!




(ainda) os animais

NavaMatadouro (excerto)

Dancei num matadouro, como se o sangue de todos os animais que à minha volta pendiam degolados fosse o meu. Dancei até que em mim houvesse espaço para um poema de que todas as imagens depois fossem desertando.


Luís Miguel Nava, O Céu Sob as Entranhas, Poesia Completa, Publicações D. Quixote, 2002

julho 15, 2004

Todos queremos ser lidos

Matrecos
Andamos 'todos' aqui, escrevemos, para sermos lidos (falo no plural propositadamente). Quem diz o contrário, mente. Escrever para a gaveta é escrever para dentro de nós mesmos. Uma catarse. Mas então porque sermos os melhores leitores de nós mesmos? Devia ser escrever e calar, não? Deixemo-nos de hipocrisias, escrevemos para sermos lidos, ponto final.

Esboço #1

espera o som das gaivotas
das ondas
espera uma espera negra
na ilha muda

'la palabra es un ala del silencio,
el fuego tiene una mitad de frío'

não existe silêncio no que escreves
e as sombras estendem-se até
à pedra, as mãos no centro exacto
do fim.

É sempre

em quantas dores se reparte um corpo que encontro o sinal, vegetariano, de que o deus pode ser mais plural, que a morte não é tão mortal nem que amar alguém ou algo que não morre seja possível. Tudo morre, até as pedras. Numa última redundância, tudo se transforma. Até a morte. Que nas últimas semanas se vestiu de uma proximidade assustadora. Talvez quando morrer o poeta eu pense de maneira diferente, ou nem isso. Quando me morrer alguém mais próximo, nem que seja pelo lado de fora.

Uma ajuda ao Jeremias

Penso que andas a ler outras coisas:

Milagre. Quatro vezes ao ano poderá [o homem priveligiado] converter-se no animal que quiser, e a seguir voltar a converter-se em homem.

Stendhal, Les privilèges

julho 14, 2004

Nós e os animais

É bom, por vezes, tornarmo-nos animais, sabendo que voltamos sempre à condição de humanos.
(não sei de onde veio isto, mas fica aqui; ando a ler muito Ruy Belo)

julho 13, 2004

Os Invisíveis

Os InvisiveisHá livros que gostaríamos nunca mais acabassem. Não só porque fim é uma palavra terrível. Mas também porque é como se algo dentro de nós, depois de ter encontrado um modo nosso de falar, que nos surpreende e emociona, se interrompesse e nos voltasse a ficar interdito. Conversas assim, raras, intensas, fazem-nos sentir outros e é pois com tristeza que assistimos ao seu término. Os Invisíveis, primeiro livro de prosa de Ana Paula Inácio (n.1966) é um desses livros. Comove-nos, escava nos terrenos lodosos da alma e remexe nessa ferida com o cuidado cirúrgico de um especialista. Lê-lo é uma experiência intensa. No entanto e à primeira vista estamos perante histórias de gente comum. Tão comuns que certos acontecimentos podem até ter sido vividos por nós com características semelhantes. Viver, contudo, não significa necessariamente pensar. E talvez se dê o caso de, avassalados pelas mil pequenas coisas do dia-a-dia, nunca nos ter passado pela cabeça que certos momentos foram uma experiência de crueldade, até porque certas crueldades não possuem código penal, tampouco são notícia ou encontram espaço entre o vendável. Ora os doze contos deste livro são sobre a crueldade. Ou, se se preferir, são sobre a ficção em que vivemos, sobre a quimera da soberania de indivíduos à deriva na barca de Caronte. São sobre essa sempre qualquer coisa que nos distrai, ocupa, toca e faz sair de nós mesmos e nos mergulha no infame, na invisibilidade.

Doze contos. Doze histórias breves. Muito breves. Com homens e mulheres à deriva. Seres vulgares, mas seres humanos. Com pensamentos e sentimentos. Todos no descontentamento de si ou do que os rodeia. Todos perdidos no espaço e no tempo que lhes coube em sorte. E de que a autora fala com contida emoção, desdobando a meada de uma solidão sem esperança, enquanto entre o cáustico e o enternecida nos torna cúmplices ou carrascos da vida dessa gente.

Mais do que retratar pessoas avassaladas pelo nada, sem outra coisa além da casa ou da rua e mesmo aí perdidas, invisíveis, aborda com um hábil e delicado sentido de observação a vida tal como é vivida por quantos são, quase sempre e só, consumidores de sonhos, derrotados de esperança. Gente que vive além do trabalho, do amor, do diálogo, pois essas são formas de êxtase que lhes foram recusadas, por excesso ou por falta, e a quem não resta nada senão a morte esplendorosa, porque chave de um além que é o fim do sofrimento. Indivíduos que se colocam, pois, entre parêntesis e mantêm a ilusão de viver. Indivíduos encerrados e condenados ao covil dos hábitos, com existências terrivelmente monótonas, qual castigo que sofrem em silêncio. Não se trata de masoquismo, porque não retiram daí nenhum prazer, mas da assunção de uma tragédia e tragédia grandiosa porque cheia de gente. Uma tragédia onde raramente se ouvem queixumes, pois são mais os desabafos e quase sempre breves, num desfastio próprio de quem se habituou a sofrer.

Carlos Bessa


Esboço

esperam-te o som das gaivotas e das ondas
o som das estrelas
espera-te uma espera negra
na ilha que te abriga fixa matou

'la palabra es un ala del silencio,
el fuego tiene una mitad de frío'

não existe silêncio fora do que escreves
e as sombras estendem-se até
à pedra, as mão no centro exacto
do fim.

Jorginho


Não sei se são as mãos, ou os olhos, ou as letras. Não pode ser só a melodia.
Não sei se é a memória de uma voz feminina, anos atrás num concerto, que gritava 'Jorginho, faz-me um filho!'. Não pode ser só a música.
Será talvez o estilo errante, apaixonado, de viajante que nunca saiu do seu lugar, de dentro. Será, sem dúvida o crescer junto, ou ao lado, na companhia das mais belas emoções. Na partilha de 'quase' todos os concertos.
E na próxima quarta-feira, dia 21, lá estarei no Beer Deck. Quem precisa de coliseus quando tem um espaço assim para cantar, à altura da tua sede. Logo agora que tu não bebes. Fazemo-lo nós, por ti, e para que a magia de uma noite se prolonge pelo menos até ao dia seguinte.

julho 12, 2004

Cem anos depois - devo-me ter esquecido de os escrever

Conta-se que Vinicius pediu a Neruda que o deixasse utilizar uns versos seus para uma melodia que estava a preparar. Neruda respondeu que os versos não eram seus, que eram de um famoso tango argentino. Vendo o embaraço do músico, Neruda acrescentou: 'Mas são muito bonitos. Devo-me ter esquecido de os escrever'.
São momentos assim que fazem do poeta o homem que foi, acima de tudo. Ou as palavras que seguem abaixo. Se fosse vivo faria hoje 100 anos.

XIV

Me falta tiempo para celebrar tus cabellos.
Uno por uno debo contarlos y alabarlos:
otros amantes quieren vivir con ciertos ojos,
yo sólo quiero ser tu peluquero.

En Italia te bautizaron Medusa
por la encrespada y alta luz de tu cabellera.
Yo te llamo chascona mía y enmarañada:
mi corazón conoce las puertas de tu pelo.

Cuando tú te extravíes en tus propios cabellos,
no me olvides, acuérdate que te amo,
no me dejes perdido ir sin tu cabellera

por el mundo sombrío de todos los caminos
que sólo tiene sombra, transitorios dolores,
hasta que el sol sube a la torre de tu pelo.


LIV

Sabrás que no te amo y que te amo
puesto que de dos modos es la vida,
la palabra es un ala del silencio,
el fuego tiene una mitad de frío.

Yo te amo para comenzar a amarte,
para recomenzar el infinito
y para no dejar de amarte nunca:
por eso no te amo todavía.

Te amo y no te amo como si tuviera
en mis manos las llaves de la dicha
y un incierto destino desdichado.

Mi amor tiene dos vidas para amarte.
Por eso te amo cuando no te amo
y por eso te amo cuando te amo.



Pablo Neruda, Cem sonetos de amor

Telhados de Vidro Nº 2 - que diria a tua à minha morte?

O nº 2 da revista de poesia Telhados de Vidro, publicação não periódica da Averno, editada por Inês Dias e Manuel de Freitas, traz-nos José Miguel Silva, Rui Pires Cabral e Kavafis, para além do próprio Manuel. Traz também a Renata Correia Botelho desde o prinípio das águas, com a poesia cá de casa, ou outra forma de ser a Ana Paula Inácio e a Ana Teresa Pereira. Uma poesia sem maiúsculas que a seguir transcrevo na íntegra. Para ler até ficar na memória das mãos.


a mesa está posta de ervas
para dois, esperam-nos
melros e canteiros.

no jardim, sabem que fomos
com o musgo, com os grilos,
para o colo da terra,

somos agora parte
da primavera, nunca estivemos

tão chegados ao mundo

tão dentro de casa.

//

disseram-lhe que era tempo de dar
domingo às mãos. grafou no punho
o último anzol,
encolheu-se entre as algas estendidas,
mapas enxutos de sal,
o seu corpo rolava com os seixos

nada divide os filhos da água.

//

é sempre a mesma curva
cega, neste troço de pedra lascada,
não há como escapar
às primeiras chuvas
ao piso escorregadio dos olhos,
despiste, falésia mortal,
o coração não entende
sinais vermelhos.

//

em quantas dores se reparte
um corpo, o espaço
húmido de boca a boca,
centro exacto do fim
para onde apontas
a seta

és o teu arqueiro.

//

longas veredas de silêncio, as sombras
estendem-se pela quebrada, voltam
à pedra. asas e lírios recolhem

restos de cor, a noite
leva as chamas para o princípio
das águas; amanhã, teias de luz
dão à costa e a gaivota traz no bico

gotas de vitral.

//

plantas os dias em
ramos de hera, assim

ganhas terreno
vivo, a palmo

que diria a tua à minha
morte?

Renata Correia Botelho
Telhados de Vidro Nº2, Editora Averno, Maio 2004
(páginas 37 a 42)


julho 10, 2004

A Sophia, tudo.

O Mil Folhas hoje disse tudo. E ela não faltou à chamada, como da última vez, para a revista Relâmpago dedicada à Nova Poesia Portuguesa. Ela que vem do fim do tempo:

Juro

Difícil é saber de frente a tua morte
Difícil é ter quarenta anos.
Difícil é saber que o teu amor
representa a morte para o teu amado.
Difícil é quereres partir
e eu sem herança para te dar:
faço-te a mala.
Difícil vai ser fazer arroz
e, no dia seguinte, comer a tua parte
arrefecida.
Difícil vai ser comprar menos pão,
menos ovos,
menos favas.
Palavra que vai ser difícil
e palavra dada é palavra jurada.

(Poema feito a partir do primeiro verso de As Ilhas VII, do livro "Navegações", um dos últimos da Sophia)

Ana Paula Inácio


julho 09, 2004

O poeta

O poeta é:

'um fingidor' - Pessoa
'um mostrador' - Nemésio
'um escutador' - Sophia

julho 07, 2004

Poema II

(ou porque não gostava de ser Presidente da República)
para ler de joelhos, mãos entrelaçadas uma na outra em frente ao peito

Nossa Senhora
faz com que decida sem medo
e sem o Ferro ou o Santana
que o Portas siga o Durão
e fique por lá, quietinho.
Guia-me a razão como guiaste
o Scolari e os pés do Maniche.
Tem misericordia da minha familia,
das vestes da minha esposa
e lembra-te das minhas lágrimas.
Recorda que quem vier, virá por bem
e por proveito próprio
que se não for um há-de ser o outro
o que é o mesmo.
Se nada mais for possível
diz-me baixinho ao ouvido:
troco o Santana pelo Santana
ou por nenhum dos dois


com um agradecimento especial à Sofia

julho 06, 2004

Poema I

para Pedro Santana Lopes

Deixa os sapatos à entrada
o cavalo branco só passa uma vez,
os milagres só acontecem quando não estamos em casa.
Acredita em Deus como nos comboios.

Comentário de um adepto do F. C. Porto,

depois da vitória da Grécia na final do Euro 20004:

'Pelo menos a festa foi azul e branca...'

julho 05, 2004

Quem sou eu?

Sou o Jeremias, descendente por linha travessa do famigerado Zé do Telhado.

Jeremias, O Fora da Lei

Vou falar-vos dum curioso personagem: Jeremias, o fora-da-lei

Para Jeremias nada se assemelha à magia da dinamite

Há quem veja em Jeremias apenas mais uma vítima da sociedade

Como um poeta ele desarranja o pesadelo para lá dos limites legais
Foragido por amor ao que é belo e por vocação

Gosta do calor da aguardente e de seguir remando contra a maré
Gosta da forma como os homens respeitáveis se engasgam quando falam dele
E da forma como as mulheres murmuram: fora-da-lei

Gosta de tesouros e mapas sobretudo daqueles que o tempo mais maltratou
Gosta de brincar com o destino e nem o próprio inferno o apavora
Não estando disposto a esperar que a humanidade venha alguma vez a ser melhor
Jeremias escolheu o seu lugar do lado de fora


Agora que a Inês se 'perdeu' por terras do Sul, as torradas encontraram um novo colaborador. Jeremias é o seu nome. Bem vindo.

(letra de Jorge Palma)



Um dia mau

Primeiro perdemos o Brando, depois a Sophia. Ontem perdemos todos nós. Mais do que a desilusão, a tristeza é hoje muito grande.

Se tanto me dói que as coisas passem
É porque cada instante
em mim foi vivo
Na busca de um bem definitivo
Em que as coisas de Amor se eternizassem


Sophia de Mello Breyner Andresen, Se tanto de dói que as coisas passem



julho 02, 2004

De volta

Já passaram onze dias, aliás doze, e estou de volta.
Fui 'para fora cá dentro' (não Miguel, não fui desta vez para a ilha paradisíaca; para onde fui havia 'um qualquer acesso à net', eu é que deliberadamente optei por não o utilizar) com tudo o que de bom e de mau isso pode trazer, especialmente nesta fase da vida do nosso país. Tive de 'levar' com todos os estangeiros (e nacionais) eufóricos com o Euro2004, mas pude acompanhar de perto as últimas da 'revolução governamental', chamemos-lhe assim.
Estamos a um passo de sermos campeões europeus e a outro de termos um novo governo. Não sei qual dos dois me assusta mais.