agosto 13, 2004

Blog-off

Até Setembro. Fiquem bem.

Incondicionalmente

incondicional (adj. 2 gén., que não depende de condições, que não é condicional; absoluto, total.)

Antes de ter sido pai, faz hoje 21 meses, não sabia o significado desta palavra. Ou melhor, sabia, nunca tinha era experienciado o 'absoluto, total' que o dicionário me devolvia. Passo a explicar:
hoje sei o que é o amor incondicional, o que é amar incondicionalmente. Desde sempre que esta expressão me intrigou e, em conversas com amigos e outros nem tanto, alguns me diziam ser o amor por nós próprios incondicional. O único que realmente é puro, sincero e verdadeiro. Não me convenceu. Amar o perfeito e o imperfeito, pensava, mas passo a vida a corrigir-me, a passar borrachas por cima do que faço e sinto, e nem gosto assim tanto da minha imagem no espelho. Amor por mim próprio sim, incondicional não. Outros diziam ser o amor por quem nos está mais próximo incondicional, familia chegada (pais, irmãos, avós - não havia filhos ainda, eramos muito novos para isso) e amigos, outros ainda ser o amor pelas mulheres (ou homens) da nossa vida incondiconal, por aquelas pessoas que sabemos serem as certas. Também não me convenceu. Amo os meus pais, o meu irmão, os meus avós, os meus amigos (os mais antigos e os menos) e a mulher que julgo, hoje, ser a certa. Mas é um amor que 'depende de condições' e está (estará sempre) longe de ser 'absoluto, total'.
Hoje sei o que é o amor incondicional, faz hoje 21 meses que o sei. É o amor ao meu filho (aos nossos filhos). Um amor que não depende de condições, que não depende de quem ele é ou possa vir a ser, do que faz ou do que possa vir a fazer, não depende de ele me amar ou de ele me odiar, de ele matar ou de ele morrer. Não depende de nada. E é absoluto porque o amo todo, totalmente, em cada ferida na pele, ou em cada ruga nos olhos, em cada sorriso ou em cada choro de birra, em cada descoberta de uma nova forma de chutar a bola colorida, com as figuras do Nemo.
Hoje sei que amar assim é possível, desta forma, e que se a felicidade existir, terá de passar por aqui.



Sei que isto é um pouco lamechas e que não interessa a ninguém, a não ser a mim próprio, mas estou cheio de saudades dele e hoje vou vê-lo outra vez.



E então?

"Não toques nos objectos imediatos. A harmonia queima."

Herberto Helder, lido aqui

"dá-me vida, pediu em silêncio"

.." é tão evidente que te procuro desde sempre e agora que não estás aqui todas as mulheres se parecem contigo(...) todas se parecem contigo, mas nenhuma tem a tua condição imponderável, és tão bonita (...) com esse ar perdido de quem aprendeu a caminhar sobre as águas, e eu não sabia que era possível caminhar sobre as águas. e não posso correr o risco de perder-te (...)"


Ana Teresa Pereira, Intimações de Morte, Relógio D'Água

agosto 11, 2004

A palavra

Chegar aqui pelo calor das mãos, pelo cheiro confortável de dedos amigos, e sentir a força do mar numa pedra, numa lagoa escondida no meio da montanha. A força do mar no que resta do gelo do inverno. Chegar aqui no verão e ser inverno, como se tudo isto fizesse sentido, como se fosse ter um fim. A palavra como inicio de tudo, a palavra para sermos, acima de tudo para existirmos. Para nos tornar diferentes de tudo o resto. E com ela construir uma montanha no meio do mar, com caminhos, flores, nevoeiro, portas de ferro que se abrem para lugar nenhum, vidros partidos que se reflectem uns nos outros. Criar isto tudo e abandonar, porque nada nos pertençe, ou aos outros, nada. Nem a palavra, apesar de existirmos por ela. E ela não chega, quando mais se precisa. Ela não é, nunca é, aquilo que realmente queremos, que pensamos. E morremos nessa tentativa absurda de que o seja. De que, assim sim, tudo seja ciclico e final. De que assim, por fim, entendamos

agosto 10, 2004

(...)

Espelhar-te sempre em corpo inteiro
como o sol, se tudo ao menos uma vez
se calasse, se fosse bom e não queimasse
em crescentes aneis que vão envolvendo
as coisas, se as houver.
Só me falta saber como dança
o meu nome na tua boca.

You are welcome to Elsinore


Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam

e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós

e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor

E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar

MÁRIO CESARINY, Pena Capital, Lisboa, Assírio & Alvim, 1982

agosto 06, 2004

Poema antes da voz

toda a luz em ti está nas entranhas
o sangue corre mais espesso junto à pele
e os cadernos fecham-se na película
impressos pela objectiva das coisas
que já não existem

o mistério das que ainda resistem
presas na memória da infância
que teima em regressar

durante muito tempo incomodaram-me as capas dos livros
a arrumação ordenadamente lógica das montras das livrarias

hoje sei que por detrás deste ofício existe um outro
que leva ao centro

aqui tenho sonhos que não conto a ninguém
aqui o tempo é mais curto e o espanto
de ter tempo é efémero, como o espaço

aqui ganho raízes dividido no prato da balança
em que uma palavra basta

agosto 04, 2004

O caderno de capa preta

Os cadernos são todos de capa preta. Os cadernos são todos de capa preta, ainda que a capa do teu seja azul. As folhas podem ter qualquer textura, gramagem ou cor. O caderno pode ser de qualquer tamanho, normalizado ou não. A capa é sempre preta. As palavras que escreves nas folhas do caderno podem ser sempre as mesmas, ou diferentes a cada dia. A cor com que as escreves pode ser preta ou em vários tons de azul, pode também ser vermelha ou verde ou rosa. A capa é sempre preta. É preta mesmo que a do teu seja azul. A capa é sempre preta, mesmo que não saiba disso.
Uma vez encontrei um menino com um caderno de capa preta, mas que parecia ser um arco iris. E um outro com um caderno de capa preta, cheio de fotografias coladas, em azul, laranja e rosa. Disse-lhes que tinham cadernos de capa preta muito bonitos. Eles disseram-me que sim, que todos os seus cadernos foram e sempre seriam de capa preta, sem elásticos. Ainda que por vezes parecessem ter todas as cores do mundo.