janeiro 26, 2005

How to Tell the Birds from the Flowers

Um dos mais belos exemplos.


janeiro 19, 2005

No teu dia

Pequena elegia de setembro

Não sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte.
Estás sentada no jardim,
as mãos no regaço cheias de doçura,
os olhos pousados nas últimas rosas
dos grandes e calmos dias de setembro.
Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?
Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.
Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?
Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.

Eugénio de Andrade, em O Coração do Dia (1958)


Jamais me ensinaram outra coisa (7 de 7)

Hoje sou feliz, tenho uma casa uma cama um colchão, um amigo em cada mão, um jardim para regar. Que é como quem diz um homem, um projecto de filhos e uma casa nos arredores da cidade. Hoje sou feliz. E devo-o ao homem que escreve enquanto espera pelo almoço. Ou escrevia, porque apesar de eu continuar a ir ao nosso restaurante quase todos os dias, nunca mais o encontrei lá.
Deixei de trabalhar e agora passo os dias a vaguear pelas ruas da cidade, de olhos postos nos comboios. Levo sempre comigo o caderno de capa preta. E escrevo.

Fim

Os comboios (6 de 7)

Naquele dia saí­mos juntos do restaurante, na minha cabeça uma frase do Pina e um poema do Eugénio, um caderno de capa preta e o homem que escreve enquanto espera pelo almoçoo. Pergunto-me se ele escreve em mais algum momento do seu dia. Nunca o encontrei fora deste contexto e é aqui que nós somos aquilo que invento e desejo para nós. É aqui que nós somos, e só isso importa. Ao meu lado, o homem que me abordou no restaurante falava dos prédios, da arquitectura dos jardins e da respiração das árvores, enquanto caminhávamos pela rua em direcção ao rio.
Nessa tarde fizemos amor num quarto de um terceiro andar de uma pensão modesta junto ao rio. E da janela podia ver-se a estação e os comboios.


(continua)


janeiro 14, 2005

O outro (5 de 7)

Ontem, enquanto escrevia aquelas palavras no meu bloco de capa preta, com a minha nova caneta azul de ponta fina, um homem que desconhecia dirigiu-se a mim, perguntou-me qualquer coisa que não percebi, à qual respondi que sim com a cabeça, e sentou-se à minha mesa, do lado oposto ao meu. Era alto, jovem mas de cabelo grisalho, olhos cinzentos e mãos compridas. Falávamos a mesma língua mas ainda assim não prestei muita atenção ao que dizia, incomodou-me ter-se colocado entre mim e o meu poeta, que entretanto deixara de escrever no bloco quando o empregado chegou com o prato da comida.
O homem à minha frente falava de viagens e de livros, de escritores que eu não conhecia, falava da neve, qualquer coisa sobre procurar o seu sentido que eu não entendi. Falava de gatos e do Pina, de ele andar sempre com poemas dentro dos bolsos, falava de árvores e dizia o meu nome com uma voz funda, devagar. Chamou o empregado e pediu um café. Eu falei-lhe em sussurro à altura dos olhos
vamos sair daqui.

(continua)

janeiro 13, 2005

No nosso restaurante (4 de 7)

Ele deve ser um poeta, daqueles que escrevem versos em prosa, para a gaveta. A mancha do seu texto é tão bonita, consigo vê-la daqui através de uma estranha combinação de espelhos e reflexos na parede. Mesmo sem compreender o que escreve, sei que é um poema, pela lenta procura das vírgulas, das palavras, ainda que em prosa.
Hoje sentei-me longe das mesas do fundo, para o poder observar melhor, hoje sou eu que escrevo enquanto espero pelo almoço. No meu bloco de capa preta. No nosso restaurante.

(continua)


As canetas (3 de 7)

Hoje acordei cedo, tomei banho, vesti-me e saí de casa decidida a entrar na primeira papelaria que encontrasse. Ao fundo da rua existe uma, mas aquela hora ainda estava fechada. Apanhei um autocarro, que me levou ao centro da cidade, onde entrei numa papelaria muito comprida, com os expositores nas paredes e no meio dos corredores, pequenas salas como labirintos, onde se tinha sempre de subir ou descer três degraus. Procurei as canetas, escolhi as de ponta fina, azuis, e trouxe uma caixa de seis, de uma marca alemã.
Comprei também um bloco, pequeno, de capa preta, folhas muito brancas e lisas. Se o entrangeiro não me voltar a pedir uma caneta emprestada, posso sempre escrever no bloco. Enquanto espero pelo almoço.

(continua)


Escuridão (vai por mim)

(...)
há momentos em que se faz luz
e depois regressamos os dois
à escuridão.

Jorge Palma, Norte

janeiro 12, 2005

O almoço (2 de 7)

Hoje, depois de escrever o texto anterior, saí para almoçar no restaurante do costume. Ele já lá estava, o tronco inclinado sobre a mesa onde escrevia, o bloco em cima de uma toalha de papel. Sentei-me ao lado, numa mesa que por sorte não estava ocupada, e arrastei a cadeira com força, na esperança de que ele ouvisse e me visse. Se ouviu, não levantou a cabeça, nem desviou os olhos na minha direcção. Chamei o empregado, escolhi, pedi o prato e agora éramos dois à espera do almoço. Eu não escrevia. Comecei a remexer na mala à procura não sei bem de quê, quando a sua voz no meu ouvido
tens uma caneta
numa língua que eu podia entender. E eu tinha, mas a minha é de tinta preta, de ponta grossa, e não quero estragar a estranha harmonia das suas palavras.
não
disse.

(continua)

O homem que escreve enquanto espera pelo almoço (1 de 7)

Todos os dias da semana é assim: chego ao restaurante para almoçar e ele já lá está. Sentado a uma das mesas do fundo escreve, nos seus blocos pequenos, enquanto espera pelo almoço. Quando me aproximo e me sento perto não dá pela minha presença, nem pela das outras pessoas, ou se importa com o ruído de fundo da televisão. De vez em quando levanta a cabeça e desvia os olhos na direcção do empregado de mesa. A semana passada escrevia num bloco de capa preta dura, tipo moleskine, mas sem elásticos, hoje é num de argolas, pequeno, utilizando uma caneta de ponta fina, azul. Nunca consegui ler o que escreve, a caligrafia é difícil, de letra pequena e corrida e numa língua estrangeira, tal como ele é, de certeza. Aqui somos todos estrangeiros, mas nem todos escrevemos enquanto esperamos pelo almoço. A maior parte das pessoas olha para a televisão, outros falam ao telefone ou com colegas e amigos. Ele escreve e quando o prato com a comida chega, guarda tudo num canto da mesa e só lhe volta a pegar para ir embora.

(continua)

janeiro 11, 2005

Os primeiros anos

Nasci num dia de sol e frio em Novembro, mas foi já de noite que primeiro vi a luz e senti as mãos da parteira que me seguravam a cabeça e as pernas. No inicio do novo ano, uma pneumonia fechou-me durante cinco dias num hospital e mais trinta em casa. Cresci, engordei e comecei a rebolar pelo chão. Em Setembro fui para a escola. Ao fim de um ano de vida as pernas ganharam força e consegui ficar de pé, andar, correr e chutar a bola. No inicio do outro ano, uma outra doença pulmonar fechou-me em casa por mais quinze dias. Continuei a crescer, não engordei tanto e agora rebolo da cama abaixo. Em Setembro voltei à escola depois de trinta dias de férias. Ao fim de dois anos de vida a língua ganhou força e conseguiu dizer palavras e formar pequenas frases. Agora que outro ano começa, os meus pulmões estão finalmente curados.

ante mare, undae

O post.

janeiro 10, 2005

Alentejo

Agonia
dos lentos inquietos
amarelos,
solidão do vermelho
sufocado,
por fim o negro,
fundo espesso,
como no Alentejo
o branco obstinado.

Eugénio de Andrade

janeiro 07, 2005

Amanhã

Amanhã e depois é o sul, e os seus 'lentos inquietos amarelos'. Ou deverei dizer azuis? Para que depois tudo se construa em ausência e em palavras e que as praças fiquem desertas e os quadros por contemplar. Já dobrei aços que pensei de esferovite, construí casas sobre areia fina, dei vida a dois olhos e vinte dedos. Falta-me ver Paris contigo dentro. Ou deverei dizer Londres?

o que sangro (de novo)

As palavras tudo escurecem, agora que da luz se extraíu tudo. As casas, já se sabe, estão viradas de frente para o inverno, mas ainda assim situo-me sempre no lado incerto. Naquele onde a geometria das superfícies se abre ao frio azul de um gesto.

Intenção

Escrever a luz e depois ir escurecendo.

janeiro 06, 2005

As árvores acendem a luz

Fragmento de árvore


ouço. e o que me diz essa luz está escrito numa memória que não compreendo. está perdido nos locais aos quais não regresso. no esqueleto de uma árvore que, na luz do verão, é sangue de bicho, é suor de gente. como se todas as raízes fossem de pedra.

Acrobacias

sentados em Trafalgar Square
no intervalo de amigos
com o tempo entre as mãos
treinávamos o nosso inglês
num inquérito de revista
com Francis Bacon na capa
que perguntava:
qual dos membros
- superiores ou inferiores -
preferíamos perder
(esta ablação em língua estrangeira
tornava-se indolor, quase anestesiada)
respondeste: os braços
as pernas conservá-las-ias
como a liberdade de poder andar
respondi: as pernas
não queria ver-me
impedida de abraçar.
Assim juntando as nossas
perdas
eu abraço-me a ti
e peço-te anda, mostra-me o mundo
e quando nos cansarmos
abraçar-me-ás, então, com as pernas
e eu
andarei com os braços.


Ana Paula Inácio
Telhados de Vidro nº3


janeiro 05, 2005

Ali

O silêncio era só nosso, tudo o resto era um rápido aproximar de asas em sobressalto. Ali era só o silêncio dos cadernos de capa preta, ao redor das ruínas de árvores secas, plantadas ao acaso. A presença absoluta em nevoeiro, em terra e em bicho.

O sol em ruínas




silêncio
de asas que se aproximam
esboços de letras
em redor
ruínas na terra lenta
de nevoeiro
e de árvores
secas






janeiro 04, 2005

O pior mês

Agora que já acabou volto aqui.
Dezembro é de todos o pior mês.
Talvez por ser o último.