Alice no país dos matraquilhos
Pois é, faz hoje precisamente uma semana que a Ana 'mudou de vida'. Ou seja, que terminou o seu blog Alice no país dos matraquilhos (título 'roubado' a uma canção do Sérgio Godinho). Descobri-a através do Vincent, gostei, li tudo o que tinha escrito para trás e depois acompanhei-a para a frente. Nem sempre concordei com o que dizia. Mas sempre, sempre, gostei muito da forma como o dizia. Apaixonada, atenta, desesperada por vezes. Partilho algumas das suas paixões, dos seus gostos, outros abomino visceralmente.
Agora que o luto deste fim, já esperado, tem sete dias, é tempo suficiente para dizer que desejo redescobri-la noutro sítio qualquer o mais breve possível. Nunca fui muito bom na arte dos matraquilhos, sempre fui melhor a defender ('à baliza', na giria da coisa), mas agora gostava de passar ao ataque e dizer-te, Ana, que essa autenticidade é do melhor que conheço. Ah, e que há muito mais gente a gostar e a ouvir Fausto, do que aquilo que tu pensas, acredita.



Matadouro (excerto)
Há livros que gostaríamos nunca mais acabassem. Não só porque fim é uma palavra terrível. Mas também porque é como se algo dentro de nós, depois de ter encontrado um modo nosso de falar, que nos surpreende e emociona, se interrompesse e nos voltasse a ficar interdito. Conversas assim, raras, intensas, fazem-nos sentir outros e é pois com tristeza que assistimos ao seu término. Os Invisíveis, primeiro livro de prosa de Ana Paula Inácio (n.1966) é um desses livros. Comove-nos, escava nos terrenos lodosos da alma e remexe nessa ferida com o cuidado cirúrgico de um especialista. Lê-lo é uma experiência intensa. No entanto e à primeira vista estamos perante histórias de gente comum. Tão comuns que certos acontecimentos podem até ter sido vividos por nós com características semelhantes. Viver, contudo, não significa necessariamente pensar. E talvez se dê o caso de, avassalados pelas mil pequenas coisas do dia-a-dia, nunca nos ter passado pela cabeça que certos momentos foram uma experiência de crueldade, até porque certas crueldades não possuem código penal, tampouco são notícia ou encontram espaço entre o vendável. Ora os doze contos deste livro são sobre a crueldade. Ou, se se preferir, são sobre a ficção em que vivemos, sobre a quimera da soberania de indivíduos à deriva na barca de Caronte. São sobre essa sempre qualquer coisa que nos distrai, ocupa, toca e faz sair de nós mesmos e nos mergulha no infame, na invisibilidade.



